JANUÁRIA
Era parteira. Vim ao mundo no primeiro dia de janeiro, chamaram-me Januária. Como o deus Jano, responsável por abrir as portas do ano, eu presidia, administrava os partos, recebia os recém nascidos. Mais tarde aprendi a me despedir. Quando o sarampo veio para levar meu filho José, o do meio, agarrei-me a ele. Somente a força do meu marido me ensinou que amar é também abrir o coração à perda. Ele segurou minha mão direita, com a esquerda toquei as mãos de meu menino para que ele se sentisse seguro e pudesse, enfim, descansar.

“Aprendei a humildade e a mansidão de espírito e encontrareis conforto para vosso coração”, lembrei-me de repente. Foi quando aprendi a me despedir, a dar força para aqueles que partem.

Com o passar do tempo, as perdas se acumularam, meu pai, minha mãe, os irmãos, meu marido um de cada vez regressaram ao princípio onde todas as coisas são criadas, mas eu permaneci inteira. A todos dei assistência, tranqüilizei, segurei a mão, fiquei ao lado, ajudei na travessia.

Quando jovem só via o futuro, agora com oitenta e cinco anos lido melhor com o passado.

Minha mãe me contava da importância do nome Januária:

“Consagrada ao deus Jano. Como ele, todos temos duas faces e devemos amá-las igualmente: o passado e o futuro, o antigo e o novo, a luz e a sombra, o início e o fim, a chegada e a partida.Todas as coisas, todos os seres têm duas faces, é questão de saber olhar”, ela me ensinava.

Minha mãe percebeu o dom em mim, a habilidade para assistir os nascimentos, para aliviar as dores das mulheres.

“Tem boas mãos”, constatou minha mãe e passou a me levar quando era chamada para atender as vizinhas. Com ela que aprendi tudo. A calma, a palavra certa para a ocasião, os cuidados, o que observar, como agir.

Tarde da noite, minha mãe me acordou, foi chamada às pressas para o parto de sua comadre Firmina. O mensageiro cavalgava à frente, nós duas atrás dentro da noite. Beleza de noite, céu de estrelas, vagalumes voavam com suas lanternas: acende, apaga, acende apaga. Eu olhava e meus olhos piscavam: abre, fecha, abre, fecha no ritmo da estrelas e dos pirilampos, na cadência do cricrilar dos grilos: cri, cri, cri, cri.

“Criança abençoada, nascer numa noite como esta”, pensei já chegando.

Chegamos, minha mãe examinou a comadre. Era seu quarto filho. Talvez por me achar preparada ou por perceber que seria um parto fácil, me incentivou a assumir. Eu tinha doze anos quando fiz o meu primeiro parto. Lembro-me da emoção ao receber a criança. Nasceu berrando, pulmões fortes. Com mãos firmes cortei o cordão umbilical, soltei o bebê no mundo. Cuidei da parturiente. Examinei o bebê, um menino, João Batista, foi como o chamaram por ser o santo do dia.

“Um santo forte para proteger o menino” profetizou o pai.

E graças ao santo, segundo seus pais, cresceu forte e sadio. Rapaz foi para a cidade trabalhar. Ainda mora lá, aposentado, cheio de netos, com casa e mesa farta. Quando me visita, diz que sua vida foi abençoada pelas mãos que o trouxeram ao mundo. Gosto de ouvir suas palavras, me fazem bem, mas orgulhosa mesmo fico por ser ele um homem tão respeitado.

Constato ser verdadeira a crença de seus pais, São João Batista é um santo de muito poder. Basta ler sua história. Parente de Jesus, enfrentou o rei Herodes Antipas, morreu com coragem. Foi um bravo.

Eu ficava imaginando como seria a cabeça do santo na bandeja. Ele de barba, cabelo comprido, emaranhado e sujo de sangue. Um horror.

“Jesus Cristinho, por que não ajudou seu primo? Será que o destino de um homem não pode ser mudado? Só para cumprir as escrituras permitiu que ele morresse? Uma vida será menos importante do que as profecias? “

Jesus era um homem com esta humana incapacidade de nem sempre poder ajudar. São João Batista estava na plenitude de suas forças. Salomé o fez perder a cabeça.  

Destino é assim imprevisível.

Sa Firmina sempre me respeitou. Ela teve mais quatro filhos, eu fui a parteira. Minha mãe estava ficando cansada.  

A experiência me trouxe novos conhecimentos, era muito solicitada na serra onde morava, mas isto aconteceu com o passar do tempo. Foi também com o passar do tempo que comecei a olhar para trás.

Fiquei muito conhecida por estas bandas, requisitada pelas famílias. Quando se aproximava a hora do parto, me chamavam. Se a distância era grande, mandavam me buscar com antecedência para não haver surpresas. Não havia médico naqueles ermos, dois dias de caminhada até a cidade, viajando pelas trilhas das montanhas. As mulheres contavam era com minha habilidade, minha experiência para ajudá-las a receber mais uma criança.

Vivíamos isolados, cada habitação era um mundo, miniatura do vasto mundo lá fora. Ali a vida palpitava.

 Sete filhos, crescendo, dentro do nosso próprio mundo, sob os cuidados da minha mãe e o olhar atento do meu pai. Éramos livres para correr, brincar, mas cada um tinha sua obrigação, a minha era apanhar alecrim para fazer vassouras.

Minha mãe varria a casa com alecrim. “Para trazer alegria.”

Plantava arruda na porta da casa. “Para trazer boa sorte.”

Cultivava pimenta nos canteiros da horta. “ Para proteção e afastar mal olhado”.
Enchia os travesseiros com macela do campo. “ Para dormir bem e ter bons sonhos. Sonhar faz bem. Macela perfuma os cabelos.”

Os colchões eram de paina. “Para ter um sono leve. Sono muito profundo a pessoa pode não acordar.”

Na cozinha havia ramos de manjericão. “Para atrair bons fluidos.”

Cultivava ervas para remédio caseiro, era o que tínhamos. A saúde da família dependia delas.

Cavalinha, tomilho, tanchagem, dente-de-leão, são antibióticos naturais.

Para bronquite usava agrião, umbaúba, urucum, alfavaca.

Babosa, confrei, arnica e óleo de copaíba (comprado na farmácia da cidade) ajudavam na cicatrização.

Minha mãe, além de parteira da região, era grande conhecedora de ervas. A saúde da família era sua responsabilidade, dependia de seus conhecimentos. Quando não sabia como resolver o problema, consultava Sa Durcelina, benzedeira mais conhecida da região. Se tivéssemos dependido de médico da cidade teríamos morrido. A distância era grande.

Quando íamos à casa de meu avô, lá na cidade, meu pai levava a família ao médico. Consultávamos as mazelas persistentes. A asma de meu irmão Nandinho foi tratada e curada. Minha mãe era instruída pelo médico a usar ervas indicadas para cada tratamento. Era uma consulta abrangente.

Meu pai educava:

“Criança precisa de disciplina, de responsabilidade.”

Quando um filho completava sete anos, meu pai o matriculava na escola da vila.

“Não quero filho analfabeto. O saber não ocupa lugar, amplia o mundo”, sentenciava.

 Eu, caçula, ansiava por acompanhar meus irmãos. Ouvia, escutava e aprendia tudo que conversavam, uma maravilha a escola, ter colegas, levantar de madrugada, caminhar no escuro uma légua, sentar na carteira, ter caderno, livro, lápis e borracha. Passava horas com a cartilha de meus irmãos, olhava as gravuras, pedia para que lessem em voz alta o que estava escrito. Quando enfim fui para a escola já estava madura para a aprendizagem.

Quando volto ao passado, vejo o amor na figura de meu pai.

 Nos meses de chuva os fios d’água e os riachos cresciam, transbordavam, os caminhos deslizavam. Papai arreava o burrinho Mimoso, transportava os filhos no balaio, se a enchente era forte, carregava um por um até a outra margem e na volta da escola, lá estava ele esperando, para refazer o caminho.

E nas longas noites de inverno, sentados na cozinha, o fogo aceso, meu pai contava histórias do mundo lá fora, Lampião e Maria Bonita, cangaceiros, garimpeiros que vagavam pelas serras do Espinhaço procurando ouro. Eram histórias de bravura e de coragem. Já minha mãe sabia histórias de encantamentos, de príncipes e de princesas, de bruxas más, de crianças perdidas que se encontravam.

Cresci cercada de fadas e de anjos das histórias que lia e ouvia. Meu avô nos presenteara com o livro “Histórias de Dona Carochinha”. Primeiro minhas irmãs e meus irmãos mais velhos como eu leram e releram. Quando chegou minha vez já sabia as histórias de cor de tanto ouvi-las, mas lia e relia, devorava cada conto, relia. Era o único livro de história da casa.

Foi quando vivi meu primeiro amor. Ricardo era seu nome, mas de rico não tinha nada. Pobre, descalço, roupa limpa e apertada, nem lápis tinha. A escola lhe fornecia caderno, lápis e borracha e o mais importante, a sopa quente e suculenta    servida na hora do recreio, sua única refeição do dia. Mas os olhos, meu Deus, os olhos eram cristal negro, refletiam e irradiavam a luz do sol, eram só bondade. Inteligentíssimo, aprendia rápido, não retinha o saber, passava para frente, dividia com os colegas, ajudava quem tinha dúvidas. Apaixonei-me quando ele me auxiliou com as frações. Nunca mais tive dúvidas, as frações revelaram para mim seus segredos. Você multiplica quando se divide. Não dói, é puro prazer.

Quando voltava da escola, meus tamancos rompiam o silêncio: troc, troc, troc. Nós dois caminhávamos juntos, rindo e brincando, ele recitava:

“Canção dos tamanquinhos, Cecília Meireles...” era assim que começava.

Lindo mesmo era a última estrofe: “Até mesmo os que têm seda e arminho...”

Não sabíamos o que eram sedas e arminhos, mas eu imaginava um mundo onde todos andavam de tamanco e escutava a canção.

Ricardo jovem morreu, na cachoeira, caiu e bateu a cabeça na pedra. E a noite de seus olhos encheu meu coração de saudades.  

  Naquele tempo, ansiava pelo futuro, pelo mundo grande e misterioso, tinha uma vida para viver.

O tempo passava pela Folhinha Mariana e o mundo chegava pelo Almanaque Tico Tico. E eu, Januária, virei Sa Januária.

Peço desculpas, mas a memória é assim vem em ondas como o mar. Conheci o mar só de imaginação e de tanto imaginar, consegui vê-lo, um grande lago salgado, sempre em movimento, assim também os pensamentos. As lembranças vêm, às vezes forte, devastadora, um mar em dia de tempestade, outras vezes, são devaneios de momentos felizes, navegando no mar calmo. Resultado, este vai e vem de fatos desencontrados.

“ Ah, o mar, sinto saudades do mar que não conheci.”

Quando navego por este mar interior, encontro as crianças que ajudei vir ao mundo, muitas encontraram seus caminhos, outras, os descaminhos. A todas desejei bons augúrios e regozijei com sua chegada, mas quem pode prever o que nos reserva o destino quando somos apenas folha em branco a ser preenchida. Nem tudo era felicidade, recordo de partos em que a mãe não resistia. Cabia a mim, tomar as providências, consolar a família, era boa nisso. No Espinhaço, a vida e a morte andavam juntas, eram companheiras, só nos cabia aceitar. Os bebês nasciam, nem todos vingavam, alguns viravam anjos, e, nós, habitantes das montanhas prosseguíamos a viagem.

Há momentos em que paro, olho para trás, faz bem ver os fatos acontecendo de uma maneira nova, enfeitados. Vejo meu pai e minha mãe cavalgam, nós, crianças, nos balaios somos transportados pelo burrinho Mimoso, viajamos pelas trilhas, dormimos na fazenda de Seu Nandinho. Manhãzinha continuamos pelos caminhos tortuosos, até a cidade. Pelas ruas calçadas de ferro os cacos retinem, os sobrados olham os transeuntes. De ferro também é o pico que se avista. Lá na boca da mina, mora a Mãe do Ouro, ela atrai os homens com seus encantos e eles nunca mais voltam.  Meu avô nos recebe feliz em sua casa e confirma, seu filho, o tio Juvenal partiu enfeitiçado pelo ouro, vaga pelos garimpos, perdido neste mundo de meu Deus.

Um dia o Tio Juvenal apareceu lá em casa, na fazenda, eu tinha dez anos, ainda o vejo com o dente de ouro, a pele morena de sol, o sorriso fácil e nos olhos trazia estrelas.

Contou histórias dos lugares por onde andou, das pedras de ouro espalhadas pelas vertentes, pelos fios d´água. Falou de sua busca das lendárias esmeraldas de Fernão Dias, era capaz de senti-las próximas, mas não sabia onde. Ouro ele tinha e muito, faltava-lhe sossego, tempo para apreciar o miúdo das coisas.

E as esmeraldas escondidas estavam, escondidas permaneceram. Muitos anos passaram, um dia surgiram na flor da terra para aquele a quem se destinavam e por elas escolhido. Vai saber a sorte de cada um.

Eu gosto de contar para meus netos esta história das esmeraldas e do tio Juvenal. Minha mãe, uma sábia, dizia:

“ Todo ser tem um tesouro, algumas pessoas o encontram outras não. Tudo é questão de saber olhar.”

Eu encontrei o meu, José Vicente, um príncipe no seu cavalo baio, galopando pela vila, em frente à Igreja, até meu coração, onde apeou, onde ainda habita, embora tenha partido, uma gripe forte, seguida de pneumonia o levou. Com ele fui feliz.Vivemos juntos cinquenta e cinco anos. Ele me ensinou o que eu já sabia, para se viver intensamente, tem que se deixar consumir pelo amor, pelos anseios da alma. Sem medo, porque este fogo que brota de dentro não mata, é vida. Com José Vicente, minha vida foi uma aventura de descobrimentos mútuos. Viajávamos juntos em busca de nós mesmos. Às vezes alegres, às vezes tristes, tudo tem duas faces. Alegramos com o nascimento de cada filho, choramos quando nosso filho José se foi.

As duas filhas, Clara e Joana, encontraram seu destino, partiram para a capital, estudaram e lá trabalham.

Clara é psicóloga, puxou o pai e o avô, tem o dom para penetrar nas almas, para ver o escondido. Joana seguiu os passos da avó e da mãe, é médica obstetra, Como eu  tem o dom para receber os que chegam e ajudar os que partem. Hoje as duas estão casadas, vêm sempre me ver. Nas férias, os netos chegam, enchem a casa, andam pela vila, sobem e descem as serras. Eles são o meu orgulho. Depois que meu marido partiu, minhas meninas, é como as chamo, insistiram para que eu fosse para perto delas.

“ Ora bobagem! Vocês sempre estarão perto. Quem mora no coração da gente não fica distante, nem parte nunca ” digo.

Elas sorriem, entendem. Aqui no Espinhaço fixei minhas raízes. Aqui na vila todos me conhecem, tenho amigos. Aqui quero completar minha travessia pela vida. Amo esta paisagem de montanhas com suas trilhas e veredas. Conheço bem estas vertentes repletas de pedras e de ouro. Sei o que o ouro vale, nada se você não encontrar o seu tesouro. Como dizia minha mãe:

“ Tudo é questão de saber olhar. Até para ver é preciso saber olhar. Um prisma tem muitos ângulos, se você olhar só por um, terá uma visão limitada.”

Hoje, passado, presente e futuro se confundem em minha mente. Eu sou a soma do que vivi e de tudo que sonhei. De tanto divagar, o que imaginei faz parte do meu viver. Tenho duas faces a que olha para trás e a que vê à frente. Minha face idosa me liga ao passado, mas a face jovem permanece em minha alma, dentro de mim e sonha com o futuro. À noite, anseio pela manhã, com o sol claro. Ao meio dia, quero ver o por do sol. De tardinha, imagino a lua redonda e amarela sobre a serra, outro dia é pequena, um barco na imensidão do céu. Sonho com as estrelas. Faço viagens imaginarias por planetas próximos e distantes, conheço lugares nunca vistos pelos homens.  Dos livros que li, visitei todos os lugares. Conheço os caminhos para lá chegar.

Quando me casei, José Vicente me trazia livros de presentes. Foi assim que completei minha educação, aqui na vila, só havia escola primária. Meu pai não tinha condições de nos manter em colégio interno. A nossa fazenda era pequena, a renda dava para vivermos bem ali, naquele fim de mundo. Nasci princesa, quando me casei, virei rainha. Na vida tudo é questão de saber olhar, de como você se enxerga.”

Meus irmãos como os jovens da vila partiram. Encontraram o destino alhures. Ficamos eu e Pedro, o que cuidou das terras de meu pai. Agora lá mora um neto seu. Rapaz alegre, empreendedor, estudado. Ele tem planos para criar mulas. Também faz pesquisa com as flores da “canela de ema” para remédios florais e homeopatia.

Eu moro aqui na vila, sozinha não, tenho minhas lembranças. Maria Virginia, moça da cidade grande, encantou-se com o lugar, mora comigo, é artista plástica. As cerâmicas que ela faz são conhecidas, vendem até fora do Brasil. Gosto de sua companhia, ela me deixa sossegada. Às vezes conto para ela como fui feliz com José Vicente.

Depois de casados viemos morar na vila:

“Mais fácil para você atender os chamados” disse ele.

De fato, a fazenda que herdou dos pais fica longe, no escondido, lugar de grande beleza, mas difícil de lá chegar, à noite, principalmente. Ainda o vejo em seu cavalo branco, galopando em minha direção. Eu enfeitava o campo em frente à igreja para a festa de Santo Antônio. Ouvi o bater dos cascos do cavalo, levantei a cabeça e lá estava ele, sorridente me pediu:

“Dança comigo logo mais?”

Eu disse sim e dancei só com ele. Santo Antônio é casamenteiro, viu com bons olhos o casal, aprovou. Sim, eu disse outra vez na primavera, quando o padre nos abençoou.

E o tempo passou, um dia depois do outro. José Vicente se foi, e eu vivo e planejo o futuro.

Quando o ano está na metade, em agosto já penso e preparo o Natal: os presentes para os netos e seus namorados. A família está crescendo. Recordo os pratos prediletos de minhas filhas. Desenho, em minha cabeça, o presépio com a gruta para abrigar o menino Jesus, a estrela para guiar os três reis magos, os pastorzinhos com seus presentes para o menino, e o galo anunciando: “Cristo nasceu!”

Enquanto preparo, penso nos dias felizes com a família reunida, os amigos. Providencio presentes para os afilhados que comparecem para pedir a benção e desejar felicidades.

Vou muitas vezes à cidade, que agora ficou mais próxima, com a estrada. De carro é um instante, modo de dizer, porque guardo na memória as trilhas antigas.

Gosto de viajar, sempre gostei. Mesmo com as crianças pequenas, as viagens eram um prazer.  

Lembro quando menina, íamos para a casa de meu avô, lá na cidade. Um acontecimento. Minha avó nos levava para passear na boca da mina, organizava passeios lá em cima na montanha de ferro. No chão, musgos cobriam as pedras, orquídeas se espalhavam montanha acima. Subíamos, subíamos, subíamos e a vista era linda: montanhas e mais montanhas azuis, umas altas, outras nem tanto, distantes como os sonhos.

Minha avó se esmerava na cozinha, delícias que só ela sabia fazer. Meu avô ditava a receita de broa:

“ Um tanto de leite, se não tiver não põe. Um tanto de manteiga, se não tiver não põe. Um tanto de ovos, se não tiver não põe. Um tanto de fubá, se não tiver não põe. Um tanto de açúcar, se não tiver não põe. Agora é só misturar e colocar no forno. Cuidado para não deixar queimar “ recomendava.

Minha avó fazia feliz a broa. Eu acreditava e também meu avó, que a receita era dele.       

À noite meu avô contava casos de pessoas que já tinham morrido, lia jornais que falavam dos cangaceiros, Lampião e Maria Bonita já tinham virado lenda.

Minha avó nos levava para o quarto, os lençóis tinham o cheiro bom de macela.  Contava histórias do menino Jesus, de Herodes perseguindo São José e a Virgem Maria que fugiram montados num burrinho para o Egito, um país com um grande deserto, mas com um rio abençoado. O menino Jesus se salvava.

E ele brincava nas areias quentes do deserto, nadava no rio com outros meninos.

Hoje, a cidade ficou próxima. Suas ruas estreitas e tortas receberam uma espessa camada de asfalto. A montanha de ferro e ouro desapareceu. Outras minas foram abertas, e nelas ainda mora a Mãe do Ouro, atraindo os homens com seus encantos. A cidade cresceu, prosperou. Seu horizonte é mutável, para nos lembrar que nada é para sempre. Quanto mais exploram, mais riquezas surgem à flor da terra. Ferro, ouro, esmeraldas, safiras brotam do chão.

A cidade ficou diferente, gosto de ir lá. Ali a vida é intensa.

A vila pouco mudou. Apenas mais meia dúzia de casas, uma aqui, outra ali. A luz elétrica substituiu os lampiões. Temos água tratada nas torneiras e dentro de casa, mas as bicas continuam lá fora no quintal, escorrendo dia e noite. O telefone, o único da vila, foi instalado à força e permanece trancado dentro da casa de Sa Clotilde.

“Telefone é necessário para uma emergência. Chamar uma ambulância na cidade. Vejam a coitada da Comadre Ritinha, doze horas em trabalho de parto. Ela e a filha estão vivas graça a Sô Manuel que por acaso estava de carro visitando a filha. Cambada de gente atrasada.” esbraveja Sa Clotilde.

Nada. Discurso nenhum modificou o pensar da vila.

“Quem vai ser o responsável? Se estragar, de quem é a responsabilidade? Queremos é viver sossegados.”

Apreciei a decisão. Esta vila tem um aconchego. O progresso está pertinho, um pulo de carro até a cidade. Ônibus para lá tem todos os dias. Sai cedinho e volta à tarde. Sô Chico, da venda, adquiriu um carro, se precisar basta chamá-lo. E agora com o telefone dentro da casa de Sa Clotilde, mulher moderna e empreendedora, também é possível receber ligações e fazer chamadas. Sa Ritinha tem a chave da casa. Basta pedir que ela abre a porta, recebe os recados. Na hora marcada, o morador está ali esperando a ligação.

Na vila é assim, povo matuto, mas você pode contar com eles. O que é forte aqui é a natureza. Nestes altos de serra o vento corre solto. Quedas d´água saltam sobre pedras. Sobre as pedras, crescem as “canelas de ema” com caules finos e eretos e  folhagem em tufos. Suas flores azuladas e o miolo amarelo embelezam os campos floridos do serrado. Sob o sol quente do meio dia, exalam um perfume adocicado,  indicam que vai terminando o verão. Elas são o fênix do serrado, símbolo do renascimento, força e coragem para a reconstrução. Brotam rápido e, mais verde ainda, após as queimadas. Meu pai contava:

“A canela de ema entra em combustão espontânea de cinco em cinco anos, e o serrado todo se queima e se renova.”

 Isso era antigamente no seu tempo de menino. Hoje com o progresso a natureza mudou.

Os habitantes da vila também mudaram. Querem usufruir o que é bom do progresso, vão sempre à cidade, mas desejam conservar a paz, o sossego da vila.

Na vastidão do serrado há muita vida, o homem fica pequeno. Na cidade, a convivência estouvada entre os semelhantes faz os homens se sentirem deuses, poderosos. O povo da vila quer é se preservar, se reconhecer.  

Às vezes, amanheço incapaz, com uma urgência. São dias ruins. No peito carrego saudade de coisas esquecidas e guardadas no escuro. Porque eu, como a lua, tenho o lado negro, povoado de sombras.

Quando mais jovem, subia a montanha, levava comigo o afilhado Tonico e meu cão, Thor. Nunca é bom andar sozinha por estes descampados. Caminhava até a cachoeira das Andorinhas, minha preferida. Lá passava o dia com minhas necessidades. Deixava a água fria da cachoeira bater em meu corpo, levar minhas urgências. Ficava horas, deitada nas pedras, olhos abertos apreciando os desenhos das nuvens. Virava de bruços e percorria o caminho das formigas que trabalham e trabalham e trabalham. Escutava horas a fio a sinfonia das cigarras, o canto dos pássaros. Fechava os olhos e me deixava embalar pelo barulho da água batendo nas pedras, respingando no meu rosto. Com a água escorriam lágrimas de dor. Que dor? Dor de alma, dor de solidão, porque há espaços vazios dentro de mim que não consigo preencher nem habitar.

Hoje, com minha idade, vou a pé até o poço Encantado, logo ali no Capão Fundo. Quem me acompanha é o neto de meu afilhado Tonico e minha cadela Vida. Sento na pedra mais ajeitada, coloco no poço meus pés deformados pela artrose e permaneço. Apenas permaneço. Careço de esvaziar os pensamentos. Fico tempos esquecidos contemplando o sol brincar com as folhas das árvores. É um jogo de luz e sombra. Fotografo estes instantes na memória antes que eles se percam. Eu também sou luz e sombra.

Hoje ando irritada, fui à cidade. Na loja, uma antiga colega de escola me cumprimentou, me chamou pelo nome. Aterrorizada respondi o cumprimento, não sabia seu nome. Isto de esquecer me deixa frágil.
A memória é que me mantém viva. Quando eu morrer, ainda estarei viva na lembrança de minhas filhas e netos. Sem memória, todos a quem amei, morrerão. Morrerá um mundo. Não poderei mais visitá-los, com eles conversar e discutir.

“Ó meu Deus, conservai minha memória enquanto me der vida” rezo baixinho.

Hoje, a realidade me confunde, não sei se o acontecido foi o acontecido ou se o acontecido foi o acontecido imaginado. Será minha vida inventada?
Depois que cresci e me casei, grandes viagens eu fiz, por estas e outras serras, aqui nestas minas, até á Serra da Mantiqueira eu fui, não cheguei ao litoral.

Não conheci o mar, mas conheci o amor. Amei e fui amada. Gosto da vida e quanto mais eu vivo, mais quero viver.

MAÇÃS

Quando eu era menina, Belo Horizonte ficava longe, muito longe da cidade onde vivia. Meu pai viajava para a capital, passava dias fora. Na volta sempre trazia maçãs vermelhas, enroladas em papel de seda azul escuro. Nós, meninos, desembrulhávamos uma por uma extasiados. Amávamos pegar e cheirar aquela fruta, conhecida apenas pelas ilustrações de nossos livros. Saboreávamos as fatias suculentas que minha mãe nos oferecia. O sabor, dizíamos ótimo, encantados com tão fina iguaria.

Porém o que me ficou na memória foi o prazer da descoberta de um mundo a ser explorado.
O MURO

Ele é um chuchuzeiro simpático e galante, ela, uma roseira florida e romântica separados por um muro.

O pé de chuchu cresceu rápido no quintal de Seu Zezinho, os ramos se espalharam e subiram no muro. A roseira, antiga no jardim de Dona Flor, Florzinha para os amigos, vivia para se cobrir de rosas cor de rosas. Seus ramos cresciam e se esticavam por sobre o muro, foi assim que se conheceram.

Eles se viam todos os dias, o dia todo, observavam o vizinho, se havia frutos, se havia flores. A beleza da roseira estava nos cachos cheinhos de rosas. Mais do que bela era simples, simpática, singela. Oferecia mel de suas flores, exalava perfume, enfeitava o jardim.

Ela o via crescer, esticar os ramos em direção ao muro, aproximar-se dela. Ficaram amigos, da amizade nasceu o amor. Tudo parecia correr bem. Ele plebeu e fecundo, um manto de folhas verdes com frutos dependurados em suas ramas. Ela de origem nobre, mas na sua simplicidade, acostumada a todos acolher e a embelezar a vida, abriu seu coração.

Diariamente estendia seus galhos - quase não tinha espinhos – além do muro balançava os cachos floridos, deixava tombar pétalas sobre o emaranhado verde, objeto de seu amor. O chuchuzeiro mais afoito esticava suas ramas e com fitas verdes enlaçava e abraçava os amados cachos de rosas.  Era um amor para se deixar florescer.

Mas Florzinha, zelosa com seu jardim, de manhã pegava uma vassoura e separava os amantes, chuchu para o lado de lá, roseira para o lado de cá. Apaixonados eles insistiam, debruçavam sobre o muro, se entrelaçavam. Florzinha separava, podava os galhos mais afoitos da roseira, com a vassoura empurrava as ramas compridas do chuchu para o outro lado. Ali o amor parecia destinado a se realizar só pelo olhar que trocavam por cima do muro – visão platônica – e pelo murmúrio de suas folhas. Mas para tudo a vida dá um jeito. Às vezes Florzinha viajava. Então o amor reinava, acima do muro eles se abraçavam, se integravam, se inteiravam, a rosa formosa e o chuchu cheiroso impregnado da essência da rosa.

Ora acontece que numa dessas viagens Florzinha demorou mais do que de costume. Quando voltou, correu para o jardim. Assustada com o espetáculo pegou uma tesoura, encostou, de imediato, uma escada no muro, e subiu, e viu Seu Zezinho, viu e gostou do que viu, e conversa vai, e conversa vem, ela recebeu três chuchus, para Seu Zezinho ofereceu um cacho de rosas cor de rosa. A beleza das rosas era tanta que foi colocada para enfeitar um vaso de cristal, seu perfume espalhou e o fazia lembrar-se da vizinha. O chuchu virou um souflê saboroso. Feliz Florzinha passou pelo muro um pouco só para o vizinho experimentar. Ele lhe passou uma penca de fruta exótica cultivada no quintal, de cujas frutas ela fez um suco, convidou-o para provar. Ele foi, chegou, bateu e entrou pela porta da frente como pedia a ocasião. Hoje sem outros cuidados senão amar, podem ser vistos de mãos dadas passeando pela cidade.

Florzinha concluiu que o muro é um apoio, não separa, mas sim une ao preservar a individualidade. Ela ainda usa a vassoura para varrer o lixo e a tesoura para cortar os excessos.

E como o amor é lindo, no muro, a beleza da rosa se funde à verde ramagem do chuchuzeiro, embora distintos, eles se completam.

HISTÓRIAS DE MEDO

Tenho medo, aliás, sempre tive medo: medo de escuro, medo da noite, medo de assombração, medo de ladrão, medo da solidão, medo de morrer, medo de errar. Outros medos já tive e ainda tenho.

Criada na fazenda onde o gerador era desligado às vinte e duas horas, a escuridão me amedrontava. Queria dormir cedo, só para me livrar do terror noturno, pois naquela época, ao escurecer, sentávamos na varanda para ouvir histórias. As operárias da fábrica narravam compridas histórias de assombração, de Mula sem Cabeça, do Velho do Surrão, de Izabel e sua cachorrinha Lulu.

Um dia a nossa cachorrinha Lulu morreu. Com o coração enlutado, eu e meus irmãos a colocamos numa caixa de sapatos e a enterramos no jardim, junto a uma roseira. Foi o quanto bastou para nossa babá nos assustar. Toda manhã, quando passeávamos pelo quintal – um universo de delícias – a cachorrinha morta nos assombrava. Qualquer barulho, correria de algum animal ou mesmo o vento nas folhas, a babá afirmava que era a alma da cachorrinha Lulu. Eu escutava e via a cachorrinha Lulu correr, lá embaixo, próximo ao rego d’água e das bananeiras. Ficava petrificada, tonta de terror, o pé preso ao chão, o grito mudo preso na garganta. E à noite, trêmula de medo pedia para ela contar mais uma vez a história de Izabel e de sua cachorrinha Lulu.
Izabel vivia feliz com sua cachorrinha Lulu, numa casinha à beira da estrada.
Uma noite de lua cheia, já bem tarde, batem à porta e uma voz pede:
“- Izabel, abre esta porta que eu quero te visitar.” Mas a cachorrinha Lulu, atenta, responde:

“- Izabel já lavou, Izabel já jantou, Izabel já deitou, volta amanhã para visitar Izabel.”

Foi assim que começou, toda noite de lua cheia, a voz voltava e pedia:
“- Izabel mata sua cachorrinha que eu quero te visitar.”

“- Izabel já lavou, Izabel já jantou, Izabel já deitou, volta amanhã para visitar Izabel“ respondia a cachorrinha Lulu.

Os meses foram passando, até que uma noite de lua cheia, Izabel acorda, ouve a voz, ouve a cachorrinha Lulu. Ardendo de curiosidade, coração aberto para aventuras e fechado para o amor de sua cachorrinha, ela mata Lulu.

O tempo passa depressa, é noite de lua cheia, Izabel se prepara, veste o melhor vestido, põe laço de fita no cabelo, perfume atrás das orelhas e espera sentada para não dormir, atenta aos ruídos lá fora. Tarde da noite, escuta uma batida na porta e a voz:
“- Izabel abre esta porta que eu quero te visitar.”

Eu, menina, apavorada pedia, aconselhava:
“- Ó Izabel, não vê que a lua se escondeu, as estrelas fugiram! Tranca a porta, Izabel! Izabel aja com cautela! Pensa Izabel!”

Mas o destino é sem jeito para a curiosidade sem fim. Izabel abre a porta e... devora Izabel.

Nunca soube o que era a reticência, na minha imaginação era um ser terrível, tão terrível, melhor nem imaginar para não acontecer.

E o Velho do Surrão, tremia só de pensar.

O Velho do Surrão que pega o menino e leva embora. O velho bate no menino dentro do surrão: “Canta, canta meu surrão.” Nas praças, nas ruas, pelas cidades, a multidão aplaude, sem saber que o velho malvado leva o menino preso dentro do surrão. Não é mágica não.

Ora, nos fins de semana, acontecia de ir passear na cidade. Uma vez passou, na rua onde morava minha avó, um mendigo com um saco nas costas. Eu brincava com outras crianças em frente à casa, correndo pela rua que nem era calçada. No meio da brincadeira avistei o Velho do Surrão. Gritei, corri para dentro de casa, bati a porta com força e gritei, e gritei, e chorei. Não havia socorro possível, a febre me queimou. Entre abraços e cuidados pedi: ”Conta a história do Velho do Surrão.”

É como se eu necessitasse gastar o medo. Instintivamente eu vislumbrava o que hoje aprendi. Para medo muito grande, terror absoluto é melhor reagir e enfrentar para ficar livre. Medo e coragem, não sei até onde vai o primeiro e começa o segundo, desconheço seus limites. A coragem é fruto do medo.

Lembro-me de uma noite no metrô, ao caminhar de uma estação para outra, percebi que me seguiam. Quase não havia movimento, nem uma pessoa próxima, alguém para caminhar junto. Com o medo aumentando, apressei o passo, a pessoa também. Nada a fazer. O medo cresceu a ponto de machucar. Foi então que virei, caminhei decidida até a pessoa, cumprimentei e pedi uma informação. Era um homem alto, forte, eu mal chegava a seu ombro. Ele se assustou, conversamos e pegamos o metrô. O medo persistiu, no metrô poucas pessoas. Ao chegar à estação onde desceria, permaneci quieta, conversando, no último instante saí pela porta que fechou. Caminhei com alívio e segurança até meu destino.

Medo é assim, faz a pessoa agir, Coragem eu não sei, mas de medo eu entendo e convivo diuturnamente.  Fui criada com ele presente nas histórias como a do bicho papão que devora as crianças; presente nas cantigas de ninar: “Dorme neném que o tutu já vem”, “Nana neném que a cuca vem pegar”, “Tutu marambá não venha mais cá que o pai do menino te manda matá”.

Agora eu sei, a Izabel da história é medrosa. Sua cachorrinha Lulu é o medo que paralisa. Ao matar a cachorrinha Lulu, ela se arrisca, pobre Izabel, como toda personagem de história infantil, ela é prisioneira do destino, foi punida por se arriscar. Assim fui educada no medo.

Na infância duas festas me amedrontavam: a Semana Santa e o Carnaval.
Da Semana Santa recordo-me daquelas imagens enormes, da procissão com o Senhor morto no caixão, os soldados romanos batendo suas lanças nas pedras de ferro – as ruas calçadas de ferro - a banda tocando música fúnebre, tudo era pesadelo.

Mas um medo mais antigo desponta em minha memória: os mascarados. Durante o Carnaval eles me aterrorizavam. Ainda vejo a menina dentro do carro. O carro passa pela porteira, entra no gramado em frente a casa da fazenda, um mascarado se aproxima da janela. A menina grita, esconde o rosto, o coração dispara. Tonta de terror adoece, febre alta, ida a médicos, viagens à capital. São fatos vagos, feito fiapos de nuvens. Só o que ficou entre intervalos de lucidez e delírio, tudo misturado. Vozes chegam até ela: ”Esta menina não vinga.” “Isto é mau olhado, precisa de uma benzedura.” A viagem para a capital. A capital fica tão longe. Na estrada no carro fretado a menina delira. “Quero ovo” e tanto pede que o pai atende. Na primeira parada o pai manda vir um ovo. “Frito ou cozido?” “Cozido” confirma a menina pequenina e pálida. O ovo lhe faz bem, devolve-lhe as cores. Imagens confusas, o hotel na capital, a cadeirinha alta para sentar-se à mesa do restaurante, o cheiro enjoativo de comida, só queria ovo, ovo cozido. No consultório sob a vigilância do pai, o médico ausculta o pulmão, o tórax, aperta seu abdômen. A volta para casa de avião. No aeroporto, o avião vermelho enche seus olhos, quer porque quer viajar nele. Vermelho é a sua cor, lhe ensinaram a gostar do azul da virgem. Vermelho é o demo, o capeta, o perigo. Como lhe atrai o vermelho, só não confessa. Embarcam em um avião cinza. A menina chora. Dentro do avião, no colo macio da avó, encosta a cabeça no casaco peludo, o pai atento ao lado. Dorme tranquila, se recupera.

Hoje adulta, mascarados ainda me assustam, temo os mascarados e as máscaras. Minha habilidade para lidar com o escondido, o que está por trás é nenhuma. Talvez porque usei muitas máscaras como escudo, defesa contra o medo. Agora batalho para me libertar dos disfarces, ver claro o escondido, explicar o real, mesmo sabendo que a vida real é também a da imaginação.
Seu Nico, Nhá Terezinha

Seu Nico levanta cedinho, escuro ainda. Arreia sua égua Serafina, na besta Matilde coloca dois balaios com a colheita e parte, um par de léguas pela frente. Lá na vila, Seu Humberto vende tudo para a feira do Carmo. Madrugada, Seu Nico já sobe a serra, Serra do Cipó, Serra das Bandeirinhas, Serra dos Alves, serra, serra, serrador, por muitas serras ele andou, pela Serra do Espinhaço, pelos olhos de uma morena com quem se casou.

Nhá Terezinha fica em casa, há muita coisa para fazer. Sexta feira as crianças chegam, os netos, netos bençoados, Quinzinho e Lena. Seu coração enternece. A alegria é tanta que Nhá Terezinha suspira. Quinzinho e Lena já na escola da vila e da vida... Suspira fundo! Quinzinho, o mais velho, tão querido, Lena, a mais faceira. Nhá Terezinha canta uma modinha para acalentar criança, espantar mau olhado, evitar quebranto. E canta e trabalha, faz a obrigação de todo dia, mais agrados e surpresas pros meninos.

Sozinha naquelas lonjuras, trabalho é diversão. Medo sente não, não dá tempo. O tempo todo tomado, trabalho em casa, na roça, tratar dos animais, cultivar ervas, preparar remédio para a vaca Esmeralda com arranhadura na pata. "Não vá morrer a coitada!" O tempo passa ligeiro, o dia está no esplendor do meio dia. Nhá Terezinha pára, pensa no marido. "Já deve estar na vila." Na memória, a lista de encomendas, o perfume dos embrulhos traz o cheiro de cidades distantes, lugares apenas imaginados, ensolarados, cidades mágicas com bandeirinhas pelas ruas, e à noite, música e dança na praça com espetáculo de fogos e artifícios, explosão de luzes. Arrepia só de pensar na beleza. Como o mundo é grande! Há tantas coisas bonitas, boas também, para tudo quanto é gosto. Nhá Terezinha trabalha e sonha, amanhã levantar cedinho, subir a serra, tomar banho de cachoeira, pular lá de cima da pedra e sentir o corpo mergulhar na água fria do poço. Comer fruta madura, lançar pedrinhas e ver repicar no espelho da água, apanhar gabiroba, contar caso, dar risada, só coisas gostosas. Estariam juntos os quatro, ela, Seu Nico, os netos. Que dia!

Dia claro, sol quente. Seu Nico avista a vila, lá embaixo, um presépio. Apressa a égua Serafina, dá uma palmada na anca da besta Matilde. O dia vai ser longo. Lembra-se dos netos, sexta feira, à noite, estarão em casa. Netos abençoados, Joaquim e Leninha. Joaquim o mais esperto, Leninha, lenitivo. Sorri feliz só de imaginar. Acelera o passo já chegando, chegou.

Agora o dia passa ligeiro. Muitos negócios e compras, no mais é prosear. Ele ouve, escuta, conversa e fala. Muitas notícias de amigos, novidades da vila para contar. "Minha Tê vai apreciar." Nem percebe o passar das horas. A noite vem escura, sem brilho de estrelas. Satisfeito quer partir, regressar, sente urgência de sua casa, de seu bem querer. Monta na égua Serafina, chama a besta Matilde, somem na escuridão. No breu da noite nem um som, só se ouve o bater dos cascos pelo caminho. Caminho, este não se vê, se adivinha. Súbito, surge no alto da serra uma luz, claridade. Seu Nico apressa Serafina, dá uma palmada na anca de Matilde. Fica branco por dentro e por fora, mas medo sente não, apenas vontade de andar depressa, de chegar em casa. Faz curva, sobe morro, desce morro, escuta o bater dos cascos pelo caminho claro na noite escura.

Nhá Terezinha acorda de repente. Coração aflito reza baixinho: "Valha-me Deus, Nossa Senhora! Virgem Maria protege o meu homem por estes caminhos." Em silêncio, para não acordar os meninos, abre a porta e vê. Fica branca por dentro e por fora, mas medo sente não. Longe na estrada, descendo a serra, três vultos caminham dentro da luz. Nem um som, sequer um ruído, dentro da escuridão a luz caminha, ilumina, clareia um homem a cavalo e sua besta. Ela ouve alto as batidas de seu coração. “Valha-me meu São Benedito." Imóvel, ela olha, os três chegam, chegaram, bem-vindos a seu destino, a sua casa, a seus braços e abraços. A luz também pára, sobe lá para o alto da serra e some.

Dizem que, nas noites escuras, estranhas luzes aparecem lá no alto da Serra dos Alves e de muitas outras serras da Serra do Espinhaço.
METAMORFORSE

Noite e dia
que alegria
uma vida bem vivida.

Encontros e desencontros
pequenas felicidades certas
decepções passageiras
que se somam aos meus dias.

Já não sou mais a que fui ontem
mudo a cada momento
o aprendizado continua
uma vida inteira para aprender.
CLAIRE
Quando a conheci, tinha apenas três meses, era um filhote. Correu para mim, pediu carinho. Levei a mão e cocei a pele rosa de sua barriga, estava deitada de costas com as pernas para o ar. Levantou, latiu, pulou e saltou querendo brincar. Quis coçar sua cabeça, mordeu minha mão para coçar os dentes, correu em círculo latindo feliz. Ela me escolheu. Levei-a para casa, foi amor a primeira vista.
Claire, clarinha, clarividente. Dengosa como ela só.
Jurema cuidava de minha casa, cuidou dela também. Deu-lhe comida, carinho, educação. No início, tinha por espaço a cozinha, a área, um quarto e um banheiro para transitar, todo forrado de jornal, conforme recomendações de Jurema. À noite abria-se a cancela para que ela transitasse por todo apartamento. Rápido aprendeu a fugir pela grade da cozinha. Roeu, móveis, dedos e mãos, sapatos, grade, pé de cadeira, bola e brinquedos. Aprendeu a hora de Jurema chegar. Ia esperá-la na porta. O mesmo fazia comigo. Quando eu chegava do trabalho, ela já estava esperando para brincar, receber carinho e atenção. Latia e ainda late até hoje de felicidade.
Claire é maltês, de puro sangue. Na ilha de Malta esta raça era criada nos castelos para trazer sorte. Claire me trouxe amor.
É uma dama.