Seu Nico, Nhá Terezinha
Seu Nico levanta cedinho, escuro ainda. Arreia sua égua Serafina, na besta Matilde coloca dois balaios com a colheita e parte, um par de léguas pela frente. Lá na vila, Seu Humberto vende tudo para a feira do Carmo. Madrugada, Seu Nico já sobe a serra, Serra do Cipó, Serra das Bandeirinhas, Serra dos Alves, serra, serra, serrador, por muitas serras ele andou, pela Serra do Espinhaço, pelos olhos de uma morena com quem se casou.
Nhá Terezinha fica em casa, há muita coisa para fazer. Sexta feira as crianças chegam, os netos, netos bençoados, Quinzinho e Lena. Seu coração enternece. A alegria é tanta que Nhá Terezinha suspira. Quinzinho e Lena já na escola da vila e da vida... Suspira fundo! Quinzinho, o mais velho, tão querido, Lena, a mais faceira. Nhá Terezinha canta uma modinha para acalentar criança, espantar mau olhado, evitar quebranto. E canta e trabalha, faz a obrigação de todo dia, mais agrados e surpresas pros meninos.
Sozinha naquelas lonjuras, trabalho é diversão. Medo sente não, não dá tempo. O tempo todo tomado, trabalho em casa, na roça, tratar dos animais, cultivar ervas, preparar remédio para a vaca Esmeralda com arranhadura na pata. "Não vá morrer a coitada!" O tempo passa ligeiro, o dia está no esplendor do meio dia. Nhá Terezinha pára, pensa no marido. "Já deve estar na vila." Na memória, a lista de encomendas, o perfume dos embrulhos traz o cheiro de cidades distantes, lugares apenas imaginados, ensolarados, cidades mágicas com bandeirinhas pelas ruas, e à noite, música e dança na praça com espetáculo de fogos e artifícios, explosão de luzes. Arrepia só de pensar na beleza. Como o mundo é grande! Há tantas coisas bonitas, boas também, para tudo quanto é gosto. Nhá Terezinha trabalha e sonha, amanhã levantar cedinho, subir a serra, tomar banho de cachoeira, pular lá de cima da pedra e sentir o corpo mergulhar na água fria do poço. Comer fruta madura, lançar pedrinhas e ver repicar no espelho da água, apanhar gabiroba, contar caso, dar risada, só coisas gostosas. Estariam juntos os quatro, ela, Seu Nico, os netos. Que dia!
Dia claro, sol quente. Seu Nico avista a vila, lá embaixo, um presépio. Apressa a égua Serafina, dá uma palmada na anca da besta Matilde. O dia vai ser longo. Lembra-se dos netos, sexta feira, à noite, estarão em casa. Netos abençoados, Joaquim e Leninha. Joaquim o mais esperto, Leninha, lenitivo. Sorri feliz só de imaginar. Acelera o passo já chegando, chegou.
Agora o dia passa ligeiro. Muitos negócios e compras, no mais é prosear. Ele ouve, escuta, conversa e fala. Muitas notícias de amigos, novidades da vila para contar. "Minha Tê vai apreciar." Nem percebe o passar das horas. A noite vem escura, sem brilho de estrelas. Satisfeito quer partir, regressar, sente urgência de sua casa, de seu bem querer. Monta na égua Serafina, chama a besta Matilde, somem na escuridão. No breu da noite nem um som, só se ouve o bater dos cascos pelo caminho. Caminho, este não se vê, se adivinha. Súbito, surge no alto da serra uma luz, claridade. Seu Nico apressa Serafina, dá uma palmada na anca de Matilde. Fica branco por dentro e por fora, mas medo sente não, apenas vontade de andar depressa, de chegar em casa. Faz curva, sobe morro, desce morro, escuta o bater dos cascos pelo caminho claro na noite escura.
Nhá Terezinha acorda de repente. Coração aflito reza baixinho: "Valha-me Deus, Nossa Senhora! Virgem Maria protege o meu homem por estes caminhos." Em silêncio, para não acordar os meninos, abre a porta e vê. Fica branca por dentro e por fora, mas medo sente não. Longe na estrada, descendo a serra, três vultos caminham dentro da luz. Nem um som, sequer um ruído, dentro da escuridão a luz caminha, ilumina, clareia um homem a cavalo e sua besta. Ela ouve alto as batidas de seu coração. “Valha-me meu São Benedito." Imóvel, ela olha, os três chegam, chegaram, bem-vindos a seu destino, a sua casa, a seus braços e abraços. A luz também pára, sobe lá para o alto da serra e some.
Dizem que, nas noites escuras, estranhas luzes aparecem lá no alto da Serra dos Alves e de muitas outras serras da Serra do Espinhaço.
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