HISTÓRIAS DE MEDO
Tenho medo, aliás, sempre tive medo: medo de escuro, medo da noite, medo de assombração, medo de ladrão, medo da solidão, medo de morrer, medo de errar. Outros medos já tive e ainda tenho.
Criada na fazenda onde o gerador era desligado às vinte e duas horas, a escuridão me amedrontava. Queria dormir cedo, só para me livrar do terror noturno, pois naquela época, ao escurecer, sentávamos na varanda para ouvir histórias. As operárias da fábrica narravam compridas histórias de assombração, de Mula sem Cabeça, do Velho do Surrão, de Izabel e sua cachorrinha Lulu.
Um dia a nossa cachorrinha Lulu morreu. Com o coração enlutado, eu e meus irmãos a colocamos numa caixa de sapatos e a enterramos no jardim, junto a uma roseira. Foi o quanto bastou para nossa babá nos assustar. Toda manhã, quando passeávamos pelo quintal – um universo de delícias – a cachorrinha morta nos assombrava. Qualquer barulho, correria de algum animal ou mesmo o vento nas folhas, a babá afirmava que era a alma da cachorrinha Lulu. Eu escutava e via a cachorrinha Lulu correr, lá embaixo, próximo ao rego d’água e das bananeiras. Ficava petrificada, tonta de terror, o pé preso ao chão, o grito mudo preso na garganta. E à noite, trêmula de medo pedia para ela contar mais uma vez a história de Izabel e de sua cachorrinha Lulu.
Izabel vivia feliz com sua cachorrinha Lulu, numa casinha à beira da estrada.
Uma noite de lua cheia, já bem tarde, batem à porta e uma voz pede:
“- Izabel, abre esta porta que eu quero te visitar.” Mas a cachorrinha Lulu, atenta, responde:
“- Izabel já lavou, Izabel já jantou, Izabel já deitou, volta amanhã para visitar Izabel.”
Foi assim que começou, toda noite de lua cheia, a voz voltava e pedia:
“- Izabel mata sua cachorrinha que eu quero te visitar.”
“- Izabel já lavou, Izabel já jantou, Izabel já deitou, volta amanhã para visitar Izabel“ respondia a cachorrinha Lulu.
Os meses foram passando, até que uma noite de lua cheia, Izabel acorda, ouve a voz, ouve a cachorrinha Lulu. Ardendo de curiosidade, coração aberto para aventuras e fechado para o amor de sua cachorrinha, ela mata Lulu.
O tempo passa depressa, é noite de lua cheia, Izabel se prepara, veste o melhor vestido, põe laço de fita no cabelo, perfume atrás das orelhas e espera sentada para não dormir, atenta aos ruídos lá fora. Tarde da noite, escuta uma batida na porta e a voz:
“- Izabel abre esta porta que eu quero te visitar.”
Eu, menina, apavorada pedia, aconselhava:
“- Ó Izabel, não vê que a lua se escondeu, as estrelas fugiram! Tranca a porta, Izabel! Izabel aja com cautela! Pensa Izabel!”
Mas o destino é sem jeito para a curiosidade sem fim. Izabel abre a porta e... devora Izabel.
Nunca soube o que era a reticência, na minha imaginação era um ser terrível, tão terrível, melhor nem imaginar para não acontecer.
E o Velho do Surrão, tremia só de pensar.
O Velho do Surrão que pega o menino e leva embora. O velho bate no menino dentro do surrão: “Canta, canta meu surrão.” Nas praças, nas ruas, pelas cidades, a multidão aplaude, sem saber que o velho malvado leva o menino preso dentro do surrão. Não é mágica não.
Ora, nos fins de semana, acontecia de ir passear na cidade. Uma vez passou, na rua onde morava minha avó, um mendigo com um saco nas costas. Eu brincava com outras crianças em frente à casa, correndo pela rua que nem era calçada. No meio da brincadeira avistei o Velho do Surrão. Gritei, corri para dentro de casa, bati a porta com força e gritei, e gritei, e chorei. Não havia socorro possível, a febre me queimou. Entre abraços e cuidados pedi: ”Conta a história do Velho do Surrão.”
É como se eu necessitasse gastar o medo. Instintivamente eu vislumbrava o que hoje aprendi. Para medo muito grande, terror absoluto é melhor reagir e enfrentar para ficar livre. Medo e coragem, não sei até onde vai o primeiro e começa o segundo, desconheço seus limites. A coragem é fruto do medo.
Lembro-me de uma noite no metrô, ao caminhar de uma estação para outra, percebi que me seguiam. Quase não havia movimento, nem uma pessoa próxima, alguém para caminhar junto. Com o medo aumentando, apressei o passo, a pessoa também. Nada a fazer. O medo cresceu a ponto de machucar. Foi então que virei, caminhei decidida até a pessoa, cumprimentei e pedi uma informação. Era um homem alto, forte, eu mal chegava a seu ombro. Ele se assustou, conversamos e pegamos o metrô. O medo persistiu, no metrô poucas pessoas. Ao chegar à estação onde desceria, permaneci quieta, conversando, no último instante saí pela porta que fechou. Caminhei com alívio e segurança até meu destino.
Medo é assim, faz a pessoa agir, Coragem eu não sei, mas de medo eu entendo e convivo diuturnamente. Fui criada com ele presente nas histórias como a do bicho papão que devora as crianças; presente nas cantigas de ninar: “Dorme neném que o tutu já vem”, “Nana neném que a cuca vem pegar”, “Tutu marambá não venha mais cá que o pai do menino te manda matá”.
Agora eu sei, a Izabel da história é medrosa. Sua cachorrinha Lulu é o medo que paralisa. Ao matar a cachorrinha Lulu, ela se arrisca, pobre Izabel, como toda personagem de história infantil, ela é prisioneira do destino, foi punida por se arriscar. Assim fui educada no medo.
Na infância duas festas me amedrontavam: a Semana Santa e o Carnaval.
Da Semana Santa recordo-me daquelas imagens enormes, da procissão com o Senhor morto no caixão, os soldados romanos batendo suas lanças nas pedras de ferro – as ruas calçadas de ferro - a banda tocando música fúnebre, tudo era pesadelo.
Mas um medo mais antigo desponta em minha memória: os mascarados. Durante o Carnaval eles me aterrorizavam. Ainda vejo a menina dentro do carro. O carro passa pela porteira, entra no gramado em frente a casa da fazenda, um mascarado se aproxima da janela. A menina grita, esconde o rosto, o coração dispara. Tonta de terror adoece, febre alta, ida a médicos, viagens à capital. São fatos vagos, feito fiapos de nuvens. Só o que ficou entre intervalos de lucidez e delírio, tudo misturado. Vozes chegam até ela: ”Esta menina não vinga.” “Isto é mau olhado, precisa de uma benzedura.” A viagem para a capital. A capital fica tão longe. Na estrada no carro fretado a menina delira. “Quero ovo” e tanto pede que o pai atende. Na primeira parada o pai manda vir um ovo. “Frito ou cozido?” “Cozido” confirma a menina pequenina e pálida. O ovo lhe faz bem, devolve-lhe as cores. Imagens confusas, o hotel na capital, a cadeirinha alta para sentar-se à mesa do restaurante, o cheiro enjoativo de comida, só queria ovo, ovo cozido. No consultório sob a vigilância do pai, o médico ausculta o pulmão, o tórax, aperta seu abdômen. A volta para casa de avião. No aeroporto, o avião vermelho enche seus olhos, quer porque quer viajar nele. Vermelho é a sua cor, lhe ensinaram a gostar do azul da virgem. Vermelho é o demo, o capeta, o perigo. Como lhe atrai o vermelho, só não confessa. Embarcam em um avião cinza. A menina chora. Dentro do avião, no colo macio da avó, encosta a cabeça no casaco peludo, o pai atento ao lado. Dorme tranquila, se recupera.
Hoje adulta, mascarados ainda me assustam, temo os mascarados e as máscaras. Minha habilidade para lidar com o escondido, o que está por trás é nenhuma. Talvez porque usei muitas máscaras como escudo, defesa contra o medo. Agora batalho para me libertar dos disfarces, ver claro o escondido, explicar o real, mesmo sabendo que a vida real é também a da imaginação.
Gente eu escutava essa história mas com um final feliz! ♫'O Izabel Lulu quero casar com você..'♫ Izabel não mata a cachorrinha, o monstro não come Izabel, ele na verdade a agarra e leva para o esconderijo, ela se agarra numa lobeira no caminho e MATA O MONSTRO com os frutos e galhos da lobeira. Volta para sua casa, ferida e machucada, pede perdão a cachorrinha e vive feliz para sempre com ela.
ResponderExcluirMinha avó ouvia essa história quando pequena, e creio que sempre varia. Muito bom folclore brasileiro é interessantíssimo, e pode trazer lições maravilhosas. Eu sempre senti medo mesmo com as historias tendo um final feliz. Porque a forma como são contadas é instigante pra imaginação.
ResponderExcluirQuando criança, odiava dormir a tarde. Para ficar quieta ao lado de minha mãe, que nao dormia a noite, preocupada com bandidos que poderiam entrar em casa, ouvia minha mae, que cresceu no Paraná me contar a história da Izabel. A cachorrinha nao tinha nome e a fala dela era cantada. " Isabel já lavou, Isabel ja passou, amanha na mesma hora vc torna a vir", vim pesquisar e só encontrei vc mencionando a historia. Essas historias eram usadas para frear crianças teimosas ou proteger as mais inocentes. O medo embora nao seja bom,pq em alguns casos nos limita, ele tbm nos protege.
ResponderExcluirApós ter enviado a mensagem acima, fui conversar sobre a historia de Isabel, com minha mãe. Embora tenha crescido no Paraná, minha mãe é carioca e essa historia era contada por seu pai, que era mineiro. Encontrei apenas duas menções sobre a historia, seu blog e um arquivo pdf de uma faculdade de Minas.Deixo abaixo o endereço, o link:
ResponderExcluirhttp://www.letras.ufmg.br/padrao_cms/documentos/eventos/vivavoz/De%20quibungos%20e%20meninos.pdf
Me sinto como vc com relação a mascarados. Fui criada com medo. A ter medo de tudo. Sou filha unica. Tenho medo do mar, da piscina, do Rio, do escuro, de filmes de terror, de ficar só. cresci com minha mae me fazendo medo. Se escondia atras de portas com a casa escura e fazia sons para que eu a procurasse pela casa, que para mim enquanto criança, era enorme. Mesmo tendo sido criada assim, nao percebi o mal por tras disso. Uma vez um bandido tentou entrar em nossa casa em Niteroi, e uma amiga chamou a policia. Nao encontraram nada. Poucos dias depois, meus pais foram fazer compras a noite( nessa epoca o mercado ficava aberto 24 horas)e eu fiquei sozinha com meus filhos. Meu filho fez um escandalo, gritava que queria ir junto e eu morta de medo, querendo ouvir os sons da casa, que era imensa( 3 andares), com medo de alguem querer entrar. Nesse desvario de medo e pirraça, eu resolvi fazer medo nele, para que parasse. tentava de tudo e ele queria descer as escadas e gritava, eu então no auge do desespero, me fiz de maluca. Fingi estar maluca, fazia voz estranha e com os cabelos no rostodizia que ele tinha me enlouquecido. Deu certo. Ele parou de fazer pirraça e foi brincar com a irmã, um ano mais velha, que assistia a tudo. Anos depois, ele estava c 10 anos voltei a fazer a personagem em uma situação parecida e deu certo de novo. Porem, após uma discussão boba, em fevereiro,antes da nossa quarentena, ele parou de falar comigo. Soube, pelo avô, que ele contou as duas vezes que cometi essa insanidade. E ele nao consegue mais falar comigo. Sempre fomos muito unidos. Mas ele nao consegue, ele nao sabe explicar. Ele fala em mim dormindo. Diz que me ama, dormindo. Mas, disse para mim: Mãe nao tenho vontade de falar com vc. Eu não o culpo. eu era a adulta, mesmo com medo, apavorada nao deveria ter feito. A irmã? Ri muito qdo toco no assunto. Disse que interpretei bem, mas que não ficou com nada qto a isso.
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